Artigo traduzido: Os homens-pássaros e a falácia casual, de Sean Malstrom – Parte 1

Saudações aos leitores e leitoras

Após a série de textos da EDGE, trago-lhes mais um artigo traduzido. Desta vez se trata de um artigo do ótimo e polêmico Sean Malstrom, um analista da indústria de jogos que em seus últimos artigos resolveu focar suas análises acerca da Nintendo, com suas ações, acertos e desacertos. No artigo que vocês poderão conferir a primeira parte nessa postagem – Os homens pássaro e a falácia casual –  Malstrom começa sua tese através da analogia do que ele chama de homens pássaro, ou seja, aqueles que antes da invenção do avião por Santos Dumont tentavam toscamente realizar o sonho de voar através da construção de asas mecânicas. Acreditando que se imitassem o modo de voar dos pássaros eles conseguiriam realizar o sonho, esborrachavam-se tentativa após tentativa.

Após cada fracasso, incapazes de perceber que aquele não era um modo possível de alcançar os céus, ao invés de refletirem e buscarem novos métodos, apenas aperfeiçoavam suas asas, adicionando penas ou tornando-a mais leve, conseguindo assim apenas mais e mais fracassos. Essa é apenas uma das metáforas realizadas por Malstrom para demonstrar o preconceito e a falta de visão e compreensão com que muitos enxergam o sucesso atual da Nintendo com o Wii e outrora com o DS (aqui no Brasil, quem não se lembra da constrangedora sentença em que um integrante do site Outerspace afirmou que o DS era o “console errado na hora errada”?).

Devido ao fato do artigo original ser gigantesco, tive de dividir em algumas partes, afim de que a leitura não se tornasse cansativa e longa demais. Apenas por aviso, essa foi uma tradução de minha autoria, portanto se houver qualquer erro de minha parte, por favor me apontem que corrijo imediatamente. Abraços e boa leitura para todos. Até breve.

Os homens-pássaro e a falácia casual
Por Sean Malstrom

Séculos atrás, homens tentaram voar colocando asas sobre seus braços, batendo-as com intensidade. Logicamente, em suas mentes, deveria ter funcionado. Pássaros voam. Pássaros têm asas. Então, tendo asas o homem deverá voar.

Esses senhores, cheios de orgulho, falharam todas às vezes. Tivessem eles examinado a natureza do vôo, ao invés da natureza dos pássaros, eles teriam percebido o conceito do levantamento (como Bernoulli fez). Alguém deve examinar as físicas do vôo ao invés de colocar penas sobre os braços de alguém, para imitar os pássaros. Os descendentes desses homens-pássaros estão entre nós atualmente. Na indústria dos jogos, eles estão entre os mais altos executivos e estimados analistas.

A Nintendo está voando alto. Em vez de examinar a natureza de seu vôo, os homens-pássaros estão hipnotizados por suas penas. Os analistas e executivos não vêem os conceitos da ruptura e mesmo não entendem os princípios do Blue Ocean (embora eles achem que entendem). As penas que eles vêem na ascensão da Nintendo são os jogos casuais. Portanto, eles supõem que se fizerem jogos casuais, eles voarão alto junto da Nintendo.

Não há nada novo aqui. Anos atrás, quando GTA 3 explodiu, todos os homens-pássaros começaram a lançar clones de GTA 3. Anos antes disso, foram os FPS. Mais anos antes, foram os jogos de luta sangrentos. Alguém pode encontrar os homens-pássaros na época dos 8-bits, fazendo jogos de plataforma. Eles olhavam para Super Mario Bros 3 e pensavam “Oh, entendi! Nós apenas precisamos fazer um jogo com músicas fofas, mundos coloridos e upgrades como um cogumelo mágico!” Batendo as asas sobre seus braços, esses jogos fracassaram. Incrivelmente, a despeito de quantas vezes esses homens-pássaros caíram, a cada geração eles estão prontos a colocar penas sobre as asas e pular de um penhasco.

Como a falácia casual nasceu

A indústria era, e ainda é distintivamente hardcore. Eles geram seus lucros de seqüências e de jogos de grande orçamento. Os desenvolvedores são todos hardcore. Os distribuidores geralmente são hardcore também. Quando um jogador hardcore olha um jogo hardcore, ele vê sofisticação, grandeza e, mais importante, arte, como se tivesse uma imagem de espelho diante dele. Quando um jogador hardcore olha um jogo casual, ele vê simplicidade, não-arte, facilidade, e em soma, o retardamento do jogo. O hardcore enxerga os jogos casuais não como um progresso na jogabilidade, mas como um jogo feito para jogadores retardados. “Retardados!?” Dirá o leitor chocado. “Claramente você não pode falar desse modo!” Porque não? Quando um jogador casual pega um controle Dual Shock padrão, ele fica confuso. Não tem a paciência de progredir através desses elaborados mundos 3D ou memorizar combinações de quatorze botões. Enquanto os hardcores o chamam de estúpido, ele retalia dizendo que os jogos são estúpidos.

Toda vez que vocês lerem “jogos casuais” nas noticias, apenas troquem “casual” pela palavra “retardado” e você entenderá como verdadeiramente isso é encarado pela indústria. “Existe um boom dos jogadores casuais” deve ser traduzido como “Existe um boom dos jogadores retardados”. A “Divisão de Jogos Casuais da EA” é realmente traduzida como “A Divisão de Jogos Retardados da EA”. “Porque você está chamando os jogadores casuais de retardados?” Se indigna o leitor. Não estou. Estou dizendo que a indústria hardcore é quem pensa dessa forma. “Casual” é apenas uma forma gentil de dizer “idiotas”, em seus olhos.

A razão pela qual os hardcores se deprimem quando uma companhia anuncia que fará um jogo que inclui os casuais, é porque eles sabem que todo o limite, dificuldade e paixão serão capados para fazer um jogo genérico, fácil e sem alma.

A despeito de todas as companhias e seus seguidores fazerem jogos casuais, a dita audiência casual não os estão comprando (como não compraram os clones de plataforma da geração 8 bits, os clones de luta dos 16 bits, os clones de GTA na última geração e por aí vai). Quando vêem seus jogos casuais fracassarem enquanto vêem os jogos casuais da Nintendo entre os mais vendidos, as companhias terceirizadas gritam “É TUDO CULPA DA NINTENDO! As pessoas só compram jogos da Nintendo! As terceirizadas não fazem sucesso em sua plataforma!”.

O problema não está na execução dos planos dessas companhias. O problema está na visão de mundo delas. Suas percepções são totalmente furadas e isso está custando a essas companhias, milhões sobre milhões de dólares. Caras, vocês não acham que é hora de pensar um pouco mais sobre as coisas, antes de gastar mais milhões de dólares?

Não existe jogador casual

“O que!?” Alguém ecoa do balcão. “Se isso é verdade, então o que usaremos como marca para essa geração? Sobre o que os editorialistas escreverão? Nós já gastamos tanta tinta em cima desse assunto e aplicamos o modelo jogador casual em toda história que sai. Como podemos existir sem isso?”

O alto mercado e o baixo mercado

Não existe jogador casual. Não existe jogador hardcore. Há apenas o alto e o baixo mercado.

Em qualquer tipo de produto, existe uma escala de obstáculos que precisam ser percebidos antes que os produtos possam ser aproveitados. Algumas pessoas, especialmente os técnicos entendidos, podem atravessar essas barreiras antes que outros.

Eu não sei e nem me importo. Esperançosamente, vocês homens-pássaros podem se tornar um pouco mais originais.

Pegue a indústria dos auto-falantes (muitos jogadores são familiarizados com eles). Existe uma larga linha de produtos, não é mesmo, senhor leitor?

“Sim, existe”, replica o leitor. “Há os mais básicos, mais baratos, até os medianos. Aí então, tem os de linhas mais caras.”

Muito bem… Então, quanto melhores mais caros, certo?

“Sim, Mr. Malstrom. Auto-falantes de primeira linha são muito caros.”

Agora me digam como o conhecimento do usuário atua junto com a linha do produto?

“Bem, conhecimento é a característica determinante entre todas. Quanto mais conhecimento alguém tem, significa que esse alguém é mais audiófilo ele é mais comumente ele ou ela buscarão a melhor linha. Na parte de baixo, os usuários sabem pouco de áudio e não se importam de saber. Aqueles que estão no topo são muito apaixonados por suas músicas e pegarão caixas separadas e subwoofer apenas para maximizar suas experiências.”

Então você dizendo que as pessoas da linha debaixo são estúpidas? Eles são ouvintes casuais?

“Apenas uma pessoa especializada poderia definí-los como casual. Eles (casuais) apenas não têm aquela paixão por música, então eles não têm muito conhecimento.”

E o que cria essa paixão?

O senhor leitor sorriu. “Tendo a música que eles querem ouvir.”

Então se é música que eles querem ouvir, eles começarão comprando esses auto-falantes baratos, se tornando mais informados, e continuarão melhorando esses aparelhos enquanto vão para a linha de cima?

“Sim.”

Compare o gráfico acima com a experiência dos usuários com software de jogos. Os jogos simples da época do Atari se tornaram inegavelmente mais complexos. Aqueles que cresceram com os consoles são capazes de expandir suas linhas de usuários. Esses atuais jogadores, que chamam a si mesmos de hardcore, se tornam o alto mercado.

Muitas pessoas não cresceram com os videogames ou não continuaram jogando após o Atari 2600 e NES. Olhe para o gráfico acima e pense na reação deles ao jogar um game hoje. Obviamente eles ficarão frustrados ao olharem para o manual, suarem e concluem geralmente que videogames não são para eles. Alguém satisfeito com Pong não pulará para um gigantesco mundo tridimensional de um jogo. Quando o alto mercado olha para os ditos jogos casuais, ou mesmo para jogos do passado (como os clássicos do Virtual Console), eles estão do lado esquerdo pensando “Legal, mas eu queria poder fazer mais.” Os jogos não são elaborados o suficiente para eles. No Wii Tennis, o alto mercado fica dizendo “O jogo é legal, mas eu queria poder mover sozinho meu jogador” ou “Wii Play é bacana, mas eu queria que os jogos fossem mais elaborados” ou “Puxar Mario Kart 64 é legal, mas eu queria poder jogar online com novas pistas…”

Obviamente, os limiares de satisfação do alto e baixo mercado diferem (com uma variedade de usuários no meio). Mas por propósito de simplificação, baseado nessas duas áreas, temos dois caminhos diferentes na experiência de usuário:

Deixe-me fazer uma pergunta honesta para você. Pegue seus jogos favoritos, ou, de preferência, os jogos que lhe causaram uma grande primeira impressão. Quão logo você começou a detonar nesses jogos?

Na maioria das vezes, muito logo. Richard Garriot, conhecido como Lord British, revelou há muitos anos atrás (na época que a Origin Systems ainda existia) porquê Diablo e os jogos de estratégia em tempo real como Red Alert e Warcraft 2 se tornaram tão populares. Com Diablo, é porque, de cara, você ganha níveis muito rápido. Você se sente como um durão em pouco tempo, o que lhe encoraja para seguir em frente. Os jogos de estratégia em tempo real faziam o mesmo com as primeiras missões de Warcraft 2 e Red Alert (na primeira missão soviética de Red Alert, o jogador apenas apontava e clicava para indicar aos aviões onde bombardear), extremamente simples. Qualquer um que tenha jogado World of Warcraft perceberá quão rápido o jogo é em fazer alguém se sentir poderoso nas primeiras dez fases do jogo. Outros MMORPGS desenvolvem mais lentamente, o que explica suas vendas menores.

Esses usuários do baixo mercado, se tratados corretamente, subirão de nível para se tornarem usuários do alto mercado. Novatos em World of WarCraft eventualmente se tornam os competidores mais ardorosos. Muitos têm Command and Conquer ou Warcraft 2/Star Craft como seus primeiros RTS. Eles jogaram as fases simples e avançaram linha acima, rumo à sofisticação. (Deve ser notado que World of Warcraft, Warcraft 2, Red Alert e Diablo são configurados para levar vantagem disso. As primeiras unidades e escolhas que o jogador tem são pequenas, mas se ramificam com o tempo, tornando-se mais complexos). Miyamoto ficou surpreso que os jogos Touch Generation no DS, tinham jogadores que subiram de nível para jogar Mario Kart DS e New Super Mario Bros (ambos bateram recordes de vendas).

Fim da primeira parte…
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Espero que tenham gostado até aqui. Até a próxima postagem.

André V.C Franco/AvcF – Loading Time

5 thoughts on “Artigo traduzido: Os homens-pássaros e a falácia casual, de Sean Malstrom – Parte 1

  1. Ótima tradução. Como sempre concordo com algumas coisas e discordo de outras. Vou esperar as outras partes para dar minha opinião. Já estou na espera. Abraços

  2. Bom, desconheço esse blog, nunca vi essa versão deles. O fato é que eu começei a traduzir esse texto em agosto, mas tive um problema grave no computador, quase perdi todo o conteúdo na HD. Some-se a isso que o blog saiu do ar junto dos back ups do servidor e foi uma fase infernal que tive.

    De qualquer modo, eu retomei o arquivo e postarei esse material aqui no Loading Time, porque acho o texto excelente. Enfim, conforme eu tiver tempo as partes posteriores sairão no blog.

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